ALTO CAPARAÓ / BELO HORIZONTE (MG) - O café, que só perde o posto de bebida mais consumida no mundo para a água – de acordo com a Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic) –, é degustado por um bilhão de pessoas diariamente. Indispensável ao paladar de muitos, o produto, que reina absoluto em Minas Gerais, em breve poderá também ter o aroma e sabor sentido na cerveja.
Cada vez mais o que é produzido no campo passa a fazer parte da produção das cervejas artesanais no Brasil, ganhando até mesmo premiações internacionais. Há muitas microcervejarias que se encontram no interior do país utilizando malte de cevada nacional, trigo e insumos regionais para elaboração de cervejas diferentes e curiosas. Há cervejas com gengibre, pequi, jabuticaba e até com mandioca. No embalo da criatividade na produção das cervejas artesanais - setor que representa 1% do mercado cervejeiro nacional, de acordo com a Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe) –, a novidade com café deverá ser lançada no mercado mineiro já em outubro.
Uma cerveja escura, muito bem elaborada e de fino gosto. Assim é a ‘Ave César Londinium’, a nova aposta de Henrique César de Oliveira, proprietário da marca de cerveja ‘Ave César’, que se uniu a Normando Siqueira, criador da ‘Uaimií Cervejaria de Fazenda’ e ao mestre cervejeiro Evandro Zanini, para acrescentar os grãos na formulação da famosa estilo stout.
Para o sucesso do produto, os grãos tinham de ser especiais. A bebida está sendo feita com o catuaí, uma variedade do café arábica que, segundo os produtores da cerveja, tem ótimo potencial para uma bebida de excelência. Mas o principal diferencial é a origem dos grãos, produzidos na região das Matas de Minas, no Alto Caparaó, onde está localizado o Parque Nacional do Caparaó, que, oferecendo solo e microclima ideais, garante terroir adequado.
O café é plantado numa área de 1.200 metros de altitude, na Fazenda Ninho da Águia, a grande vencedora do Coffee of the Year 2014. “Recebemos uma amostra da variedade catuaí, extraído de colheita tardia e executado em processo natural. É um produto gourmet, bastante primoroso, que se diferencia dos demais existentes no mercado”, afirma o especialista em cervejas, Henrique Oliveira.
Segundo ele, a combinação é perfeita. “Há um aumento nítido no sabor apresentando um incremento nas notas de torra, cappuccino e toffe. A bebida fica encorpada, preenchendo bem a boca. A espuma, densa e cremosa, apresenta a coloração bege intenso. A cor negra do líquido retrata o estilo e está de acordo com a escola inglesa de cervejas. É simplesmente imperdível. Vale cada gole”, garante o beersommelier.
Henrique Oliveira explica que a cerveja com café se harmoniza tanto com uma carne vermelha gordurosa - harmonização por semelhança - como com um mousse de chocolate - harmonização por contraste. A fórmula é produzida na fábrica Uaimií, localizada na zona rural do município de Itabirito, Minas Gerais. O mestre cervejeiro Evandro Zanini destaca que a porcentagem de café chega a 6% em relação aos grãos de malte da receita. “O café é cuidadosamente escolhido e o tamanho do grão influencia drasticamente. Dessa forma, os grãos arábica são os mais bem-vindos”, ressalta.
GUIA COMPLETO
O envolvimento de Henrique Oliveira com a cerveja vai além da produção de receitas especiais e inusitadas. Após catalogar todas as microcervejarias e cervejarias existentes no mercado entre 2009 e 2013, ele lançou o livro ‘Brasil Beer - O guia de cervejas brasileiras’ -, publicado pela Editora Autêntica Gutenberg. Trata-se de um guia turístico em torno da cultura da cerveja artesanal/gourmet, destacando a maioria dos estados do Brasil. “Percebi que os documentos que existiam sobre cervejas, nas diversas fontes literárias, eram fragmentados, com pouca informação. Faltava um livro que funcionasse como um compêndio, para informar aos apaixonados e curiosos sobre o tema. Senti que o mercado necessitava de um material bem ilustrado e que guiasse as pessoas pelo país em busca da cerveja feita em pequena escala, com o olhar do dono do negócio”, relata.
Em sua segunda edição, revista e ampliada, com mais de 200 cervejarias e 700 cervejas, o livro, que foi lançado em 2013, está disponível nas principais livrarias e sites de e-commerce do Brasil. Em 2017, o empresário pretende trazer outra novidade em termos de leitura. “Estou desenvolvendo a história da cerveja em Minas Gerais. Mapeamos todas as cervejarias do estado desde 1850. Esse projeto, iniciado no segundo semestre de 2014, está cada vez mais instigante”.
Processo artesanal baseado na seleção manual dos grãos
Para que a produção da cerveja artesanal com café garantisse um produto primoroso, um minucioso estudo foi feito até a definição de onde viriam os grãos para a nova aposta de Henrique Oliveira. O café do produtor Clayton Barrossa Monteiro, proprietário da Fazenda Ninho da Águia, privilegia um sistema de torra artesanal ecologicamente correto, com os melhores grãos. O diferencial é o trato artesanal também na colheita, com os grãos selecionados à mão e secagem natural, em terreiro suspenso, além de livres de agrotóxicos. Com condições ideais do clima e do solo a uma elevada altitude de - 1.100 a 1.400 - metros, os grãos garantem um café sempre fresco, com aroma intenso e sabor diferenciado.
“Devido à altitude não temos uma alta produtividade, mas temos excelência em qualidade”, garante Clayton Monteiro. A produção média da fazenda é 15 sacas por hectare, num total de 25 hectares de área plantada, o que corresponde a 1% da produção do segundo lugar na premiação do Coffee of the Year.
“Hoje, os nossos cafés são comercializados nas melhores cafeterias do Brasil e do mundo”. A conquista do Coffee of the Year 2014 possibilitou a Clayton Monteiro colocar seu café nas prateleiras da Five Elephant, em Berlim (Alemanha), e na Le Coutume, em Paris (França), consideradas entre as melhores cafeterias do planeta. A produção dos grãos catuaí vermelho e amarelo também já foi exportada para a Austrália. “Nós temos também as variedades bourbon amarelo, topázio e mundo novo”.
Quem vê a habilidade de Clayton Monteiro com a lavoura não imagina que ele começou a atividade aos 22 anos, vindo de São Paulo para Minas Gerais com um hobbie impossível de ser praticado por aqui: o surf. Com muito trabalho e energias novas, ele decidiu mudar a fama da região, que era de produzir cafés ruins.
Na época em que chegou à região, não se falava em cafés especiais, mas Clayton Monteiro começou a fazer o cultivo de forma diferente. Sua primeira novidade foi separar os melhores lotes da lavoura para consumir em casa. Para ele, era assim que conseguiria saber se o que estava vendendo era bom ou se precisava melhorar. Aprimorando a produção a cada no, passou colecionar prêmios.
Ponto a ponto
Uma das bebidas mais antigas da história, a cerveja é produzida a partir de quatro ingredientes básicos: água, malte, lúpulo e levedura. Nesse caso, o café seria o adjunto. Henrique Oliveira conta que para a nova cerveja é reservada uma quantidade do produto para ser maturada por mais tempo com a presença do café. “O detalhe está no tempo em que os grãos permanecem na segunda fase, e esse é o grande desafio. A maturação e o tempo de guarda são fundamentais para que a bebida tenha as características desejadas. Por isso, paciência é a chave do sucesso. Cada segundo conta”.
Henrique, Normando e Zanini são cautelosos com cada etapa da fabricação, pois a fórmula ainda está sendo testada. Depois de concluída, eles vão precisar do reconhecimento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para que ela entre no mercado. A previsão dos produtores é de que em dois meses o setor de cervejaria artesanal receba a novidade.
Lídia Salazar - Especial para Força do Campo - Jornal Hoje em Dia