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Homeschooling: Justiça determina que famílias matriculem filhos em escolas

06/08/2024 - Atualizado em 07/08/2024 06h57

MANHUAÇU (MG) - A recente decisão liminar da Justiça de Manhuaçu, atendendo ao pedido do Ministério Público, contra cinco famílias de Manhuaçu por educarem seus filhos em casa reacendeu o debate sobre o homeschooling no Brasil. A prática, ainda considerada ilegal no país, é criticada por especialistas em virtude de comprometer a aprendizagem e a socialização das crianças. Ainda assim, defensores do homeschooling, muitos dos quais alinhados a pautas conservadoras e religiosas, argumentam a favor de uma educação que esteja mais alinhada com suas crenças e valores, além de refletir uma insatisfação com o sistema público de ensino. Embora não haja dados oficiais da prática no Brasil, a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) anuncia 35 mil famílias praticantes do homeschooling no país.

O caso ganhou notoriedade na última semana depois da repercussão da ação contra os pais por violarem normas de proteção à criança e ao adolescente.

A pedido do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a Justiça deferiu liminares determinando que cinco famílias de Manhuaçu providenciem a imediata matrícula de seus filhos na rede regular de ensino (pública ou particular) e zelem pela efetiva frequência das crianças à escola, sob pena de multa diária de R$ 500, além da configuração de infração administrativa e crime previstos pela legislação brasileira.

As decisões foram proferidas em ações ajuizadas pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes de Manhuaçu contra cinco famílias que adotaram o ensino domiciliar para seus filhos. Conforme a legislação brasileira, os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular os filhos na rede regular de ensino, pública ou particular, não sendo permitido o ensino domiciliar.

O MPMG foi informado pelo Conselho Tutelar de Manhuaçu sobre a existência de seis casos de famílias que haviam adotado o ensino domiciliar, também conhecido como homeschooling. A Promotoria de Justiça realizou reuniões com os seis grupos familiares com o objetivo de solucionar extrajudicialmente o conflito. Contudo, apenas uma família acatou a recomendação da Promotoria e realizou a matrícula dos filhos na rede formal de ensino. As outras cinco famílias recusaram, e, por isso, foram propostas as ações judiciais.

A decisão também determina que o Conselho Tutelar, a Secretaria Municipal de Educação e a Superintendência Regional de Ensino de Manhuaçu procedam busca ativa das famílias para efetiva matrícula e frequência das crianças à escola, com remessa ao juízo de informações sobre as providências adotadas e relatórios mensais sobre o comparecimento dos estudantes às aulas.

A legislação brasileira estabelece a matrícula obrigatória em instituições de ensino para crianças e adolescentes de 4 a 17 anos.

“A escola tem um papel crucial no desenvolvimento integral da criança. Além de providenciar aprendizado acadêmico, ela também oferece um ambiente para socialização, desenvolvimento de atividades interpessoais, construção de valores, identidades, além de proporcionar atividades culturais e esportivas”, avaliou o promotor Reinaldo Lara, da 4ª Promotoria de Justiça de Defesa da Infância e Juventude. Os nomes dos pais e o número de crianças e adolescentes envolvidos não foram divulgados, pois o ocorrido transita em sigilo.

A POLÊMICA

O caso de Manhuaçu reflete uma tendência crescente de famílias, movidas principalmente pela religião, de optar por retirar seus filhos das escolas e educá-los em casa, apesar de a prática ser considerada ilegal no país. Embora não haja dados oficiais da prática no Brasil, a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) divulga em seu site um crescimento de 55% de adeptos a cada ano e contabiliza 35 mil famílias praticando a modalidade em todo o país. O maior expoente da prática são os Estados Unidos, onde se estima que 3% das famílias optam pelo homeschooling. Por outro lado, países como Alemanha e Suécia proibiram a modalidade e as famílias que infringirem a regra podem perder a guarda dos filhos. A legislação brasileira já viu tentativas de regulamentar o homeschooling, mas nenhuma proposta foi aprovada até o momento.

Historicamente, a educação em casa era uma prática comum entre famílias abastadas que contratavam preceptores ou professores para instruir seus filhos, quando a oferta de escolas públicas ainda era limitada. A diferença aqui, segundo um especialista ouvido pelo Estado de Minas, é que esses educadores eram profissionais qualificados, ao contrário dos pais que frequentemente são quem assume o papel de educadores no homeschooling. “Embora alguns pais possam ter conhecimento em determinadas áreas, não é comum que possuam domínio completo sobre todos os conteúdos curriculares. A educação é um campo especializado, e a ausência de formação pedagógica entre os pais pode comprometer a qualidade do ensino”, afirma Pablo Lima, doutor em História e professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Usado como comparativo e defesa para o homeschooling, a educação à distância, segundo Lima, embora semelhante em alguns aspectos, guarda diferenças fundamentais da educação domiciliar. “Educação à distância é feita de uma maneira diferente, com métodos estruturados que incluem interação com outros alunos e professores, ao contrário do homeschooling, que pode carecer dessas interações e suportes. A própria expressão, em si, já é bem contraditória. Em inglês, a tradução de homeschooling seria ‘escola em casa’. A escola e a casa são ambientes com regras e dinâmicas distintas. A escola possui uma estrutura que não é replicada em casa”, diz. Lima argumenta que esse modelo pode ainda contribuir para uma desvalorização do papel do educador, uma vez que a figura do professor é substituída pelos pais, o que pode gerar efeitos a longo prazo, em uma profissão já desvalorizada.

O convívio com crianças e adultos fora do círculo íntimo da família, a interação com ideias e visões de mundo contraditórias às expostas em casa, as trocas de experiências e interações, são alguns dos pontos defendidos por especialistas em educação como parte essencial do desenvolvimento dos estudantes no ensino regular. “A escola é um ambiente de distribuição de um tipo de conhecimento específico, o científico, e a socialização é uma parte essencial da educação. É muito difícil generalizar, mas a experiência escolar é muito mais do que uma preparação para a vida profissional. Na escola, as crianças aprendem a conviver”, destaca Pablo Lima. Outro ponto debatido é a proteção das crianças e adolescentes em situações de violência e abusos sofridas no ambiente familiar. Dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na semana passada, mostram que os principais autores de estupro de crianças e adolescentes entre 0 e 13 anos são familiares (64%) e que a maioria dos crimes aconteceu dentro de casa (64,7%).

Em audiência pública da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), em 2022, a então presidente da Associação das Famílias Educadoras de Minas Gerais (Asfemg) contestou o argumento de que o homeschooling prejudica a socialização das crianças. Ela afirmou que socializar é “ensinar a viver em sociedade” e que isso seria possível com a educação domiciliar. A entidade enfatiza que muitas famílias que adotam a modalidade estão insatisfeitas com o sistema educacional tradicional e buscam uma abordagem que melhor se ajuste aos seus valores e expectativas. A reportagem tentou contato com a Asfemg, mas, até o fechamento desta edição, não houve retorno.

LEGISLAÇÃO

Mudanças na legislação do país para reconhecer a educação domiciliar já foram propostas diversas vezes. A pauta era uma das prioridades da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, que chegou a protocolar um projeto de lei durante seu mandato, mas o texto não foi aprovado pelo Congresso. Atualmente, o Projeto de Lei (PL) 713/2019, de autoria do deputado Léo Portela (PL), que visa regulamentar a educação domiciliar em Minas Gerais, está parado na ALMG. O projeto permite que pais ou tutores sejam responsáveis pelo ensino de seus filhos, com supervisão e avaliação periódica pelos órgãos de educação. As crianças educadas dessa forma devem ser avaliadas por provas institucionais, e a fiscalização seria realizada pelo Conselho Tutelar e pelas Secretarias de Educação. O texto aguarda, desde setembro do ano passado, o parecer da Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia.

No Congresso Nacional há também um texto em tramitação, o PL 1338/2022, já aprovado pela Câmara dos Deputados e agora em apreciação no Senado. Durante o governo Bolsonaro, deputados federais conservadores instalaram a Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling, mas, até o momento, ela ainda não foi oficializada nesta legislatura. De acordo com o texto aprovado, para usufruir da educação domiciliar, o estudante deve estar matriculado em uma instituição de ensino, que irá acompanhar seu progresso. Pelo menos um dos pais ou responsáveis deve ter escolaridade de nível superior ou em curso de educação profissional tecnológica reconhecido, com a comprovação apresentada no momento da matrícula, junto às certidões criminais da Justiça federal e estadual ou distrital de ambos os pais ou responsáveis.

Redação do Portal Caparaó e Silvia Pires / Estado de Minas

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